sábado, 3 de janeiro de 2015

A BANHA DA COBRA


                                    
Os indivíduos bem-falantes e com muita prosápia deixam-me sempre de pé atrás. Não me estou, evidentemente, a referir àquelas pessoas que têm o dom da palavra, que se exprimem com facilidade, fazem questão de falar um português correcto e fluente e são capazes de abordar e expor qualquer assunto de forma clara, objectiva e atractiva. Essas pessoas são por norma excelentes conversadores com quem dá gosto dialogar, pessoas que merecem a minha admiração e me chegam mesmo a provocar uma pontinha de inveja por não ter sido dotado com o mesmo dom que eles. Essa inveja no entanto não é uma inveja perversa as compreensível e desculpável porque tem a var apenas com a minha incapacidade e nunca com a capacidade alheia. É verdade que gostava de ser mais fluente no meu discurso da mesma forma que gostava de ser capaz de pegar num lápis e com meia dúzia de traços fazer lindos desenhos. De quem eu desconfio mesmo é dos “papagaios”, daqueles que utilizam a os seus dotes oratórios para nos enganar. A história ensina-nos que a maioria dos ladrões e vigaristas mais famosos eram pessoas encantadoras que se insinuavam pela sua verve fácil e modos cavalheirescos para depois aplicar implacavelmente os seus golpes. Costumo dizer, por graça, que quando me cruzo com algum desses “papagaios” bem-falantes levo de imediato a mão ao bolso para ver se a carteira ainda lá está.

Ao escrever estas linhas estou a lembrar-me de uns quantos políticos que lançam mão da sua fluência oratória para enganar e confundir o povo. Quando sobem a um palco ou a um palanque e lhe põem um microfone à frente, os homens transfiguram-se, entusiasmam-se e desatam a “berrar”, como se os gritos tornem mais credível a demagogia com que pretendem enganar o pagode. O que me deixa estupefacto é que essa gritaria do orador ainda consegue empolgar os assistentes que por sua vez respondem gritando, também eles, slogans balofos e mais que estafados que não passam de mero folclore.

Esses discursos inflamados e mentirosos fazem-me recordar uma figura castiça que nos meus tempos de criança costumava animar a feira de S. Pedro, com a sua voz rouca e levemente avinhada a anunciar uma pomada milagrosa que curava todos os males do corpo. Desde a ponta dos cabelos até aos dedos dos pés não havia maleita que a tal pomada não curasse. O homem terminava sempre o seu discurso com a mesma tirada humorística. Dizia ele que quem usasse essa pomada não precisaria nunca de injecções para nada e que para ele, injecções, só do Cartaxo. No fundo, continuava a falar de pomada. No final da sua exposição iniciava a venda das caixas com a tal pomadinha milagrosa por entre as muitas pessoas que sempre o rodeavam. Era o tradicional vendedor da banha da cobra que na época era frequente encontrar nas feiras e romarias do nosso país.
Com o passar dos anos estas figuras típicas foram desaparecendo mas a banha da cobra continua a existir. Não acabou, apenas mudou de cara. Hoje já não se trata de uma simples e inofensiva mezinha vendida nas feiras mas de discursos enganadores de vendedores de ilusões. Os vendedores também não são já aqueles homens simples, muitos deles rudes e quase analfabetos. Hoje são políticos, quase todos eles com formação académica superior que têm a perfeita noção do logro em que querem fazer cair os portugueses. A pergunta que se,impõe é a seguinte: que diferença existe entre publicitar e tentar vender uma pomada alegadamente milagrosa que cura todos os males e tentar angariar votos através de promessas demagógicas que não há a menor intenção de cumprir? Eu não consigo ver qualquer diferença, antes pelo contrário, vejo sim algumas semelhanças. Ambos são mentirosos e ambos pretendem tirar lucro enganando as pessoas. Só que uns, os antigos se limitavam a vender uma pomada inócua que se não fazia bem também não fazia mal a ninguém. Os novos, esses são muito mais perigosos porque pretendem o poder a qualquer custo e que uma vez conquistado são capazes de arruinar um povo e uma nação. A situação actual deste país é a prova do que acabo de afirmar. Afinal sempre consigo encontrar uma diferença entre estes dois tipos de charlatões Os antigos tinham sentido de humor e faziam-nos rir, os novos só nos fazem sofrer e chorar.

Guilherme Duarte

(Artigo publicado no nº de Outº 2014 do jornal Cruz Alta)


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